Série da Netflix mistura ficção com elementos reais
A nova série da Netflix, Os Donos do Jogo, estreou nesta quarta-feira (29/10) e mergulha no universo do jogo do bicho no Rio de Janeiro. A produção acompanha disputas entre personagens ficcionais que comandam o jogo de azar na cidade, mas se inspira em fatos reais para construir o submundo das apostas ilegais.
Segundo o diretor e criador da série, Heitor Dhalia, entrevistas com pessoas do meio, policiais, notícias e literatura ajudaram a fundamentar a história. Ele ressalta que, apesar de ser ficção, a trama tem um grau de verossimilhança bastante alto.
Hierarquias familiares e sucessão
O protagonista, Profeta (André Lamoglia), pertence a uma família de bicheiros em Campos dos Goytacazes e migra para o Rio para expandir os negócios. Na série, ele se infiltra nos núcleos que controlam o jogo do bicho, organizados como uma máfia familiar.
O sociólogo Daniel Hirata explica que a estrutura familiar é uma característica marcante do jogo do bicho. Heranças, disputas internas e controle de territórios são comuns na realidade. Além disso, famílias disputam hegemonia tanto entre clãs quanto dentro deles, com conflitos de sucessão frequentes.
Na série, a família Guerra é liderada por Búfalo (Xamã), que assume o comando após se casar com a herdeira, Suzana (Giullia Buscaccio). Ele enfrenta desafios internos, principalmente de Mirna (Mel Maia), irmã de Suzana. Essa dinâmica reflete a luta pelo poder registrada em famílias reais, como a dos Andrade e Garcia.
Cúpula do jogo do bicho
A série retrata uma cúpula de líderes que organiza o poder nas ruas. Profeta busca ocupar um lugar nesse comando. Na realidade, a Liga Independente dos Bicheiros se consolidou nas décadas de 1970 e 1980, com figuras como Castor de Andrade e Anísio Abraão David mediando conflitos, dividindo territórios e financiando eventos culturais.
Portanto, a série reproduz a ideia de um comando centralizado, mas com personagens e situações adaptadas para a ficção.
Personagens: ficção inspirada na realidade
Heitor Dhalia reforça que todos os personagens são fictícios, mesmo que se inspirem em figuras reais. Elementos de diferentes famílias e histórias foram combinados para criar protagonistas originais.
Por exemplo, a dinâmica de Búfalo e Suzana lembra o genro de Castor de Andrade, que herdou parte dos negócios familiares, mas a história na série é independente. Da mesma forma, a rivalidade entre irmãs em Os Donos do Jogo remete a conflitos reais, como o das gêmeas Shanna e Tamara Garcia, filhas do operador Maninho Garcia.
Violência e poder
A série explora a violência associada ao jogo do bicho. Heitor Dhalia chamou o gênero de “máfia tropical”, destacando como poder, território e sangue mediam o comando dos contraventores.
Hirata lembra que, apesar de alguns bicheiros serem vistos como pitorescos, a realidade é brutal. Investigações mostram que disputas entre Rogério Andrade e Fernando Iggnácio resultaram em mais de 50 mortes entre 1999 e 2007. Outros casos, como o assassinato de Maninho Garcia em 2004, reforçam essa característica.
Presença feminina e dominação masculina
Embora dominado por homens, o universo do jogo do bicho inclui mulheres buscando poder. Na série, Mirna Guerra e Leila Fernandez (Juliana Paes) desafiam estruturas masculinas. Hirata comenta que, embora mulheres tenham ocupado cargos de liderança em outros crimes, a regra no jogo do bicho é a predominância masculina.
Além disso, a narrativa mostra como mulheres enfrentam barreiras culturais e familiares ao tentar ascender no mundo das contravenções.
Conexões com cultura e economia legal
O jogo do bicho sempre se conectou a setores legais, criando uma rede mista de negócios ilícitos e formais. Famílias de bicheiros mantêm investimentos em outros jogos, economia formal e cultura, incluindo patrocínio a escolas de samba e clubes esportivos.
A série ilustra essas conexões, como o envolvimento de Galego Fernandez no Carnaval e no hipismo. Hirata destaca que bicheiros foram fundamentais para o crescimento das escolas de samba e para a profissionalização dos desfiles.
Relação com política e polícia
Os Donos do Jogo também mostra como contraventores influenciam autoridades. O jogo do bicho sempre financiou campanhas políticas e manteve relações públicas com figuras influentes.
Na vida real, policiais foram investigados ou presos em operações contra bicheiros. Por exemplo, em 2023, Rogério Andrade teria distribuído R$ 502 mil em propina a batalhões da PM e delegacias da PC, garantindo a continuidade de atividades ilegais.
Adaptação às apostas online
A série aborda um tema moderno: a competição com jogos online. Profeta tenta conquistar clientes que não usam aplicativos de apostas.
Na realidade, grupos de bicheiros também se adaptam às plataformas digitais. Operações policiais recentes mostram migração para sites de bets, onde lavagem de dinheiro e exploração do jogo do bicho continuam de forma virtual.
Ficção com alto grau de verossimilhança
Apesar de personagens e enredos serem fictícios, Os Donos do Jogo mantém verossimilhança com o mundo real. Estruturas familiares, rivalidades internas, violência, dominação masculina, envolvimento com cultura e relações políticas refletem a realidade do jogo do bicho no Rio.
Portanto, a série combina entretenimento e estudo sociocultural, permitindo ao público compreender melhor como operam essas contravenções, sem revelar diretamente identidades reais.
Conclusão
A nova produção da Netflix mistura ficção e realidade, oferecendo uma visão dramatizada e fundamentada do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Ao mostrar hierarquias familiares, violência, relações culturais e políticas, Os Donos do Jogo ajuda a entender a complexidade de um submundo que influencia não apenas o crime, mas também a economia e a sociedade carioca.
