“RH da Pirataria” e centrais na Argentina: os bastidores da operação que desmontou o império dos apps de streaming ilegal
Uma grande operação internacional desarticulou recentemente um dos maiores esquemas de streaming pirata voltados ao público brasileiro. Plataformas populares como My Family Cinema e TV Express, que somavam milhões de usuários, foram derrubadas após uma investigação conduzida na Argentina. O esquema, que movimentava cifras bilionárias, usava empresas de fachada, sistemas de pagamento em criptomoedas e até um departamento de Recursos Humanos formalizado, o que lhe rendeu o apelido de “RH da pirataria”.
Um mercado clandestino bilionário
Nos últimos anos, o consumo de conteúdo pirata cresceu de forma alarmante na América Latina. Segundo estimativas de entidades do setor audiovisual, os serviços investigados reuniam cerca de 4 milhões de usuários apenas no Brasil, com uma base total de mais de 6 milhões de assinantes ativos em toda a região.
Essas plataformas cobravam valores aparentemente modestos — entre US$ 3 e US$ 5 por mês (algo entre R$ 16 e R$ 27) — para liberar o acesso a filmes, séries e eventos esportivos protegidos por direitos autorais.
Entretanto, o baixo custo individual escondia um faturamento gigantesco. De acordo com fontes ligadas à investigação, o grupo movimentava entre US$ 150 milhões e US$ 200 milhões por ano, o que equivale a até R$ 1 bilhão.
Além disso, o sistema de cobrança era sofisticado e usava intermediários financeiros digitais e carteiras de criptomoedas, dificultando o rastreamento das transações.
Como funcionava o esquema
O núcleo do esquema estava na Argentina, onde empresas aparentemente legítimas atuavam como “centrais” de operação. Em agosto de 2025, a Justiça argentina autorizou buscas e apreensões em quatro escritórios, que na prática serviam de base para o controle financeiro e comercial dos serviços piratas.
Em um dos locais, os investigadores encontraram cerca de 100 funcionários contratados formalmente, com carteiras assinadas, benefícios e até um setor de Recursos Humanos. Esse detalhe inusitado inspirou o termo “RH da pirataria”, usado informalmente pelas autoridades.
Durante a operação, foram apreendidos 88 notebooks, 37 discos rígidos, 10 pen drives e 568 cartões de recarga usados para liberar o acesso ilegal nas chamadas TV boxes.
Além disso, as autoridades confiscaram 9,4 milhões de pesos argentinos (cerca de R$ 35 mil), US$ 3.900 em espécie e carteiras digitais com US$ 120 mil em criptomoedas, somando aproximadamente R$ 640 mil.
Esses dados mostram o alto nível de profissionalização do esquema, que se comportava como uma empresa de tecnologia formal, mas com uma base totalmente ilegal.
TV boxes: o elo entre o usuário e a pirataria
As TV boxes, também conhecidas como caixinhas de IPTV, são dispositivos que permitem acessar conteúdos via internet em qualquer televisão.
No entanto, muitos modelos são vendidos no Brasil sem homologação da Anatel, o que significa que não passam por testes de segurança e nem têm autorização para uso comercial.
Esses aparelhos são a principal porta de entrada para os aplicativos piratas, já que vêm pré-configurados com softwares que oferecem canais de TV, filmes e séries sem licença.
De acordo com especialistas em cibersegurança, além de violarem direitos autorais, as TV boxes piratas podem representar sérios riscos aos consumidores. Elas podem conter malwares que permitem roubo de dados pessoais, interferência em outros dispositivos legítimos e até ataques hackers às redes domésticas.
Por isso, a Anatel reforça a orientação para que os usuários adquiram apenas equipamentos certificados.
A homologação, segundo o órgão, garante que o produto atenda a normas técnicas de segurança, radiofrequência e conformidade de rede, protegendo tanto o consumidor quanto as operadoras.
Por que a Argentina virou o centro das operações
A escolha da Argentina como base do esquema não foi aleatória.
Por um lado, o país oferece custos operacionais mais baixos, resultado da desvalorização do peso argentino. Por outro, conta com profissionais qualificados em tecnologia e administração, o que facilitou a montagem de um sistema de gestão eficiente e de aparência legítima.
De acordo com fontes da investigação, a maioria dos clientes estava no Brasil, no México e em outros países latino-americanos, mas o controle administrativo era realizado de Buenos Aires.
Assim, os criminosos aproveitavam brechas legais e a distância geográfica para escapar da fiscalização direta das autoridades brasileiras.
Enquanto isso, os serviços permaneciam online por meio de servidores hospedados na China, o que dificultou o encerramento imediato das plataformas após as operações policiais.
O impacto da derrubada das plataformas
Entre os serviços que saíram do ar estão My Family Cinema, TV Express, Eppi Cinema, Vela Cinema, Cinefly, Vexel Cinema, Humo Cinema, Yoom Cinema, Bex TV, Jovi TV, Lumo TV, Nava TV, Samba TV e Ritmo TV.
Juntas, essas plataformas atendiam a milhões de assinantes e representavam um dos maiores conglomerados de streaming ilegal da América do Sul.
Nos dias seguintes à derrubada, milhares de usuários brasileiros reclamaram nas redes sociais sobre a interrupção dos serviços.
Muitos deles afirmaram não saber que se tratava de conteúdo pirata, acreditando estar pagando por uma assinatura legítima.
Entretanto, as autoridades alertam que, ao utilizar esses serviços, o consumidor também contribui com atividades ilícitas e pode ter dados pessoais comprometidos.
A reação das entidades do setor audiovisual
Entidades internacionais, como a La Liga (organizadora do campeonato espanhol), passaram a colaborar com a investigação, já que grande parte do conteúdo pirateado envolvia transmissões esportivas exclusivas.
Além disso, associações como a Alianza e a Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA) reforçam a importância de ações conjuntas para combater a pirataria digital, que causa prejuízos bilionários à indústria do entretenimento.
A Agência Nacional do Cinema (Ancine) também atua em parceria com órgãos reguladores e empresas privadas para bloquear domínios, servidores e aplicativos ilegais.
Segundo especialistas, a repressão a esse tipo de atividade deve continuar nos próximos anos, com foco em tecnologia de rastreamento e cooperação internacional.
Um alerta ao consumidor
O caso do chamado “RH da pirataria” revela um novo nível de sofisticação no mercado ilegal de streaming.
Agora, esses grupos não operam mais como amadores isolados, mas como verdadeiras empresas multinacionais com estrutura corporativa e faturamento milionário.
No entanto, as consequências legais e financeiras para os envolvidos podem ser severas.
Para o público, a lição é clara: consumir conteúdo pirata é crime e traz riscos reais.
Além de violar leis de direitos autorais, o uso de serviços não homologados pode comprometer a segurança digital e alimentar redes criminosas internacionais.
Portanto, escolher plataformas oficiais e dispositivos certificados é a única maneira de assistir com segurança e respeito às leis.
O desmonte desse esquema mostra que a era da impunidade digital está chegando ao fim — e que, aos poucos, a indústria do entretenimento e as autoridades estão unindo forças para proteger tanto os criadores quanto os consumidores legítimos.
